07 Abril 2022
PATHOS – ETHOS - LOGOS, A TRILOGIA DE JOAQUIM PINTO E NUNO LEONEL, ESTREIA A 14 DE ABRIL
Pathos Ethos Logos, a trilogia de Joaquim Pinto e Nuno Leonel, que teve a sua estreia mundial no Festival de Locarno 2021, estreia em Portugal no próximo dia 14 de Abril.

Em Lisboa, essa estreia terá lugar em exclusivo no cinema Ideal, que apenas entre 14 e 20 de Abril exibirá os três filmes em três sessões diárias - às 10:30, 15:30 e 20:30 (cada uma em horas diferentes todos os dias).
Os filmes circularão também por todo o país.

Depois de E agora? Lembra-me, Prémio Especial do Júri em Locarno (filme que estreou na abertura do cinema Ideal em 2014), Joaquim Pinto e Nuno Leonel regressam com uma trilogia de 11 horas sobre “a terra, a vida e a morte. Indiferença e afeição, abandono, fé. A palavra e o silêncio, luz e sombras, a infindável sobrevivência, a incapacidade de amar.
Uma trilogia que decorre em 2017, 2028 e 2037. Três mulheres de diferentes gerações e origens, cujos caminhos se cruzam, nas suas tentativas de existir plenamente. Fragmentos de histórias que recuperam experiências e eventos da vida real para o núcleo de cada personagem.”


Luis Miguel Cintra sobre PATHOS ETHOS LOGOS

Há muito tempo que não me sentia tão pequeno perante uma obra de arte.
Estou cansado. Parece que já tenho discurso para as ver por aí, aos pontapés, já piso terra conhecida, fico a marcar passo e deixo-me ficar. Tenho medo de concluir que o meu tempo já passou. Tenho fugido à banalidade ignorante do que vejo, mas entristece-me toda a arte antiga deixar de conviver com as pessoas e ter passado a museu, humilhada com a etiqueta que lhe puseram de obra prima de fácil acesso em reprodução mecânica, e vou pela primeira vez a um estádio de futebol à procura de uma exaltação física e primitiva com saudades das touradas, já destruídas pela hipocrisia. Tenho tédio de ver o que desejámos e tentámos fazer como uma espécie de sopa de pedra para conforto melancólico dos vencidos, enfim, perdi a minha alegria de viver, mas espero a surpresa de uma renovação que gostaria que fosse irmã da violenta esperança do maior político vivo, o Papa Francisco, brandindo no meio da tempestade global as palavras do Evangelho.
Vejo o último filme do Pedro Costa comovido pela fidelidade intransigente á sua pureza de traço, e de repente, o Joaquim e o Nuno, de quem evidentemente já espero tudo, muito por razões afetivas, com a alegria displicente que só conseguem os sobreviventes, atiram-me com um calhamaço, que tudo vem mudar: são 10 horas de cinema em que navego como na minha alma, mas que me deixam interdito: o que é isto?
Até que enfim! Eu ainda não tinha chegado aqui e não sei se ainda vou chegar. Não sei se esgotarei alguma vez o campo aberto da multiplicidade de registos para onde o filme me lança e que é afinal o mesmo em que eu constantemente me vejo sacudido pela minha vida. Mas agora sei que, graças a Deus, (Gracias a la vida… está claro, ouve-se no filme) levarei comigo o que esse calhamaço por certo deixou no meu coração: outro grande testemunho de amor à vida, de atenção aos outros, uma grande porta para a renovação das consciências.  Estava a fazer falta.
Mas que é que eles me querem dizer? E aí vem uma primeira surpresa. Eles não me querem dizer nada, ou querem dizer tudo, querem simplesmente dar a ver e ouvir o que viram ou inventaram que viram, como e o que pensam, pensando que talvez já seja tempo de percebermos todos o que somos e que só a viver perceberemos, por mais histórias que viver deite a perder. Nunca entenderemos se formos levados por contabilidades e gestões. Nada tem barreiras. É como desejarmos. Mas e as formas? Eu não reconheço esta forma, a forma do mais camaleónico dos filmes. E, no entanto, tem a sua intensíssima arrumação. Concluo exaltado: isto sim, este é já um cinema novo. Tão marginal como de baixo orçamento e tão rico como extenso, e tão quotidiano, tão feito com a prata da casa. Sabem porquê? Porque, acredite quem quiser, mas só na prata da casa surgirá oiro de lei, isto é, recorrendo à imagem teatral que mais me quadra, a estrela do presépio é num céu de papel que surgirá. O mesmo para onde me propunha um dia destes levar Jeanne Moreau. Mas ela quis ir sozinha. Sabia o caminho. Já era uma das muitas estrelas que ficaram perdidas no céu. Não faz mal.  A toda a hora surgem estrelas que se perdem no céu de papel deste filme sobre o nosso pensamento.
O Ruben, o rapazinho, o filho desta parábola da sagrada família ou da Santíssima Trindade, não sei, e que nasce fora do tempo, visto que já o vemos no nosso futuro ao princípio do filme e só no fim do filme ouvimos o seu nascimento, na morte do pai ( ou era São José?), vai ter de pensar muito até descobrir que no seu nascimento apareceu outra vez uma estrela por cima de uma cidade de Belém sem luz .Talvez nem descubra o que  a pouco e pouco se vai reconhecendo e que atravessa todo o filme e só no fim revela o seu sentido, espantemo-nos, no grande plano de um cão. Que não conheceu o pai. Vai sentir que essa estrela e outras como ela já não as encontra, estão perdidas. Já não se vive assim. Mas o Ruben ouviu quando nasceu um grito humano: era a voz de sua mãe que gritou Cláudio! Vai talvez suspeitar quando olhar para os milhares de pontos de luz que neste filme estão sempre a surgir das trevas, vai pensar e talvez descobrir que se a Máquina fala em “clouds” que à noite tapam as estrelas, é a olhar o céu, que vai finalmente descobrir o que será o azul, a cor mais linda porque essa é a cor do lugar de sua mãe e vai descobrir que ela não morreu, está num céu, como João conta no Apocalipse, foi para lá atravessando um deserto.
Começará então a procura do pai. Houve uma voz que gritou Cláudio. Essa voz está no fim do filme, seja ela de quem for. Era a de sua mãe, mas o Ruben não se lembra. O Ruben já não viu nem ouviu o grito! Mas é esse o nome que toda a vida irá tentar saber se é afinal o nome de Deus, sim, oxalá suspeite que é filho de Deus. Não saberá porque foi que a sua mãe desapareceu no deserto e vai ser difícil descobrir que a luz que ele julgou ver no dia do nascimento, quando a morte viu a luz, era a estrela do presépio. Vai ter de redescobrir debaixo de um cobertor sozinho com o portátil.
Cosa sono le nuvole? Perguntava Ninetto Davoli, marioneta atirada para a estrumeira na hora da sua morte, porque nunca tinha visto o céu. Eu ainda me reconheço em Pasolini, e Tolentino pelos vistos também, que assim chamou *as suas crónicas no Expresso. Falamos com a mesma gramática dos símbolos. Pasolini ainda viveu com uma memória da língua popular que nós já não temos, Pasolini conheceu o céu da terra dos camponeses das noites de verão, conseguiu filmá-lo… Nós, quer dizer eu, reinventei-o para mim na floresta das metáforas que me é querida. Mas sonhei—o, na verdade nunca o vi.
Mas este filme já não gosta de metáforas. Gosta da vida, mesmo que seja a da prata da casa que é a que lhe é dado usar como material, porque ama-a talvez mais que qualquer aparato filosófico que o dignificasse como representação da obra de Deus. Já não há bem e mal no filme do Joaquim e do Nuno. Bateram no fundo da piscina e sabem que não é o mar. Pilatos não lhes interessa. Interessa o Apocalipse. Interessa a desmesura de João. A generosidade. Mas pensam, pensam muito, estão sempre a pensar... E nem por um instante combatem a mentira que não os espreita a toda a hora, como me acontece a mim. Não lhes interessa. Interessa-lhes perceber as relações entre tudo o que julgam conhecer. E ainda lhes interessa perceber. Interessa-lhes ter ou não ter fé, mas sem pecado. Acreditam na evidência e para pensar contam com as sensações. Houve os Reis Magos que conheceram, deixaram para nós agora perceber. E acham os dois autores que assim como há máquinas que não prestam, não se percebe porque foram inventadas, há outras de que gostam muito, umas que guardam a memória do que os olhos também viram, e viram evidentemente já deformado por hábitos de filtros e de troca de objetivas e do que os ouvidos ouviram agora já transformados com mudanças de formato... Essas câmaras e os micros, divertem-nos. Isso eu entendo muito bem, mas nunca consegui fazer. Era mal trair a obra de Deus, sujá-la com truques industriais. Algumas vezes pelo menos foi, assim que pensei, e Pasolini também, quando renegou a sua trilogia, mas renegar também foi mal, foi arrogância. Vanitas. E depois? Lá diz o fado: por morrer uma andorinha não se acaba a primavera. Agora já percebi isso, mas há sempre coisas para conhecer.
O filme do Joaquim e do Nuno não é um exercício de louvor a Deus. Julgo que eles diriam que ainda não estão preparados. Não é (ainda?) uma oração. Há uma imparável ação de graças, isso sim, que não deixa nunca perceber nem sossegar, já se sabe. Ou não querem saber isso? Que nunca perceberemos, ou Deus não fosse Deus, mas isso lhe agradecemos, que nunca cederemos às tentações que o demónio fez a Cristo. Sabemos com humildade que só seremos gratos aceitando que nunca perceberemos e se disso tirarmos prazer. Não interessa perder tempo. Temos de senti-lo passar, para o não perdermos. Nunca percebi como se inventou a palavra sempre. Mas deixemos esse trabalho para os que vieram depois de mim e que lêem menos livros ainda do que eu, que poucos li.
Deduz-se do que tenho vindo a formular que gosto muito de dar voz no filme a vários textos. Por agora não conto mais por pudor. Refiro ainda a emoção de um filme povoado de Marias. Deixai-me que, citando o que o Padre António Vieira fazia antes de entrar no assunto de um sermão, eu vos lembre depois de verem este filme que faz muito bem rezar o Ave Maria. Por mais que nos custe julgar-nos pecadores:
Peçamos àquela Senhora, que só foi exceção deste pó, se digne de nos alcançar graça. Em latim:
Ave Maria gratia plena,
Dominus Tecum,
Benedicta tu inter mulieribus
et benedctus fructus ventris tui, Jesus.
Sancta Maria mater dei
ora pro nobis pecatoribus,
nunc et in hora mortis nostra .  àmen.
Para mim a mãe do Ruben tem também a cara da Virgem e no seu ventre de grávida está um filho de Deus.
E o cão ouviu o tiro. E acreditou.
Luis Miguel Cintra