O filme tem a sua primeira exibição pública em Sessão Especial no festival INDIELISBOA (6 de Maio, 20h00, São Jorge), sessão que será seguida de debate sobre a temática do filme.
O documentário de Margarida Cardoso retrata a curta vida de Sita Valles, carismática dirigente estudantil, que morreu em Angola em 1977 em circunstâncias misteriosas, não tendo nunca o seu corpo sido encontrado, nem o do seu marido José Van-Dunem, e o do seu irmão Ademar Valles.
Uma produção Midas Filmes, com o apoio financeiro RTP - Rádio e Televisão de Portugal e do ICA - Instituto do Cinema e do Audiovisual (Apoio à Finalização)
SINOPSE
Sita Valles viveu 26 anos. Nasceu em Angola em 1951 e ali morreu em circunstâncias misteriosas em 1977.
Estudou Medicina em Lisboa, e foi uma dirigente estudantil carismática e militante do PCP. No Verão de 1975 decide voltar a Angola, que considerava o seu país, ligando-se a um grupo de pessoas - mais tarde apelidados de fraccionistas - que questionavam a linha ideológica do MPLA. Acusada de ser uma das cabecilhas da tentativa de golpe de estado de 27 Maio de 77, Sita é perseguida e presa. Rumores indiciam que foi torturada e morreu frente a um pelotão de fuzilamento. Nos dois anos que se seguiram mais de trinta mil pessoas tiveram o mesmo fim, ou passaram anos em cadeias e campos de concentração. Testemunhos dos sobreviventes, guiam-nos na possível reconstituição da vida e do tempo de Sita Valles, vida que terminou num episódio traumático, de uma violência absurda, e há muito silenciado
NOTA DE INTENÇÕES
A história da curta vida de Sita Valles surgiu-me quando fazia a pesquisa para as personagens do meu filme de ficção YVONE KANE. Procurava compreender o que poderia mover uma jovem da geração de 60/70 a dedicar-se de forma tão empenhada e crente na luta política.
Sita Valles nasceu em Angola em 51, descendente de uma família Goesa. Foi uma menina privilegiada numa sociedade colonial, mas despertou para a política e veio para Lisboa onde lutou contra o regime fascista e pela libertação das colónias. Foi militante do Partido Comunista Português e uma figura extremamente carismática e influente nos meios estudantis. Depois da revolução de Abril de 74, e de certa forma desiludida com o fracasso do PCP nas 1º eleições livres em Portugal, Sita volta ao seu “novo país” no Verão de 1975. Na Angola “livre e independente”, ela quer levar para a frente a Revolução Socialista que encaminhará o seu país para o “socialismo real”.
Liga-se a um grupo de pessoas - mais tarde apelidados de fraccionistas - que questionavam a linha ideológica do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), que consideravam demasiado “à direita”, corrupta e em negação dos seus princípios originais na defesa do povo e da revolução.
Mas Angola é nessa altura o centro da Guerra Fria e Sita vê-se envolvida, engolida, e finalmente eliminada, pela mecânica da História, violenta e imparável. Acusada de ser a ideóloga da tentativa de insurreição em 27 de Maio de 1977, Sita acabou os seus dias frente a um pelotão de fuzilamento. Tinha 26 anos e um filho de 3 meses. O seu corpo, o do seu marido José Van-Dunem, e o do seu irmão Ademar Valles, nunca foram encontrados.
Nos dois anos subsequentes aos acontecimentos de 27 de Maio, uma onda de violência sem limites recaiu indiscriminadamente sobre milhares de pessoas. Não são só os declarados fraccionistas e “nitistas” que são presos e mortos, mas todos os dissidentes da linha ideológica do grupo dominante dentro do MPLA. Estima-se que cerca de 30.000 pessoas tenham sido assassinadas ao longo de dois anos. E nunca se conseguiu perceber por que razão um dia a purga terminou...
Estes acontecimentos foram, durante mais de 40 anos, silenciados. O terror desses anos de purga, traumatizou para sempre a sociedade angolana e calou testemunhas . Muitas histórias ficaram por contar. Uma delas foi a de Sita Valles.
Voluntariosa e destemida terá sido Sita um caso exemplar da filha da Revolução devorada pela própria Revolução? Aparentemente sim, mas existem tantos mistérios no seu percurso de vida, sobretudo relacionados com os últimos dois anos da sua vida, que a pesquisa sobre se revelou uma tarefa extremamente longa, árdua e emocionalmente difícil.
Quanto mais conhecia o seu lado mais pessoal, mais tinha a certeza que Sita representa hoje, de forma exemplar, muitos dos sonhos, lutas, ilusões e desilusões de toda uma geração.
Sita Valles é hoje uma espécie de “fantasma incómodo” de uma geração que passou por períodos de grandes mudanças, que se empenhou e lutou por ideais que foram de alguma forma traídos ou esquecidos. O que pensar daquilo que “sonhámos”? O que resta dos nossos ideais no mundo que construímos? O que resta da Sita Valles em nós?
Durante quase 10 anos fui juntando material, filmes de arquivo, fotografias, documentos privados e oficiais. Filmei em Portugal e em Angola várias situações e imagens dos locais relacionados com a histórias de Sita. Fiz cerca de quinze entrevistas a pessoas que compartilharam com ela o percurso de vida. Mas só nestes últimos dois anos (entre 2019 e 2021) senti que começou a haver uma certa abertura para se falar dos fantasmas do 27 de Maio. E só nessa altura refiz uma série de entrevistas, a testemunhas que agora se sentiam seguras para falar, e consegui construir o filme.
O filme centra-se sobre a figura da Sita, não é um filme sobre os acontecimentos do 27 de Maio, que só por si merecem um outro filme. Ficam muitas questões em aberto, muitas coisas por contar, muitas questões por responder, mas penso que um filme nunca pode contar tudo, e espero que pelo menos este trabalho tenha o mérito de nos despertar a curiosidade e a necessidade de falar sobre este tempos silenciados.
Ao revelar os traços que Sita deixou aqui neste mundo, as suas cartas, as suas imagens, os sinais, as pessoas que cruzou e as transformações dos lugares por que passou, queria que este filme fosse uma reflexão profunda sobre o tempo e a vida de Sita Valles. Um tempo de violentas mudanças históricas e identitárias que marcaram uma geração, deixando muitos numa longa tentativa de procura de justiça e superação de um trauma.
Margarida Cardoso